sábado, 9 de abril de 2016

Memórias Literárias

     O PIBID está voltando à escola, e uma das oficinas que serão oferecidas neste ano pelos bolsistas do PIBID-UCS Letras do CARVI é com base no gênero Memórias Literárias.
     As memórias de uma pessoa são um livro aberto para si e fechado para os outros. Através das memórias literárias temos a possibilidades de conhecer fatos até então desconhecidos, que ao passarem para o papel ganham uma chance de se tornarem imortais. Quem reconta a memória de outra pessoa precisa em primeiro lugar permitir-se ouvir.


Então, agora vamos nos permitir ler e sentir a Memória Literária da acadêmica Bruna Frantz Pegoraro, que, por sinal, é uma das mais emocionantes que já ouvi.



BLAU¹

Vovó e vovô chegaram da Alemanha em uma noite fria do inverno de 1892. Ali, em Santa Catarina, iniciaria a nova vida que o governo alemão havia planejava para o povo que aos poucos chegavam à terra do pau-brasil. Fazia pouco que a mão de obra escrava havia sido abolida, então precisariam de pessoal para colonizar e trabalhar nas terras brasileiras e ofereceram essa oportunidade de crescimento para o ainda jovem casal. Aceitaram e, depois de uma longa viagem de semanas mar adentro, estavam no tão esperado neu welt².

Foi em Santa Catarina que eu nasci. Em dia de festa de Ano Novo, mamãe estava comemorando junto com toda a pequena vila em um salão de festas quando resolvi assustar a todos e chegar fazendo bonito: urgentemente, chamaram uma parteira, e foi ali mesmo, entre as toalhas floridas da matinê, que iniciei essa vida. Por diversas vezes ouvi de conhecidos e desconhecidos: “então, essa é a Nelly! festeira desde cedo!”.

Lembro-me muito nitidamente da minha escola: pequena, distante, acolhedora. Castigos frequentes e desumanos assombravam cada um de nós, e o que nos confortava era o recreio com lanches que mamãe preparava. No intervalo sentava no balanço improvisado com cordas e madeiras velhas pendurado em uma árvore e ficava admirando um menino com cabelos loiros brilhantes rodeado de mocinhas, um tal de Willy: que lindos olhos azuis celestes ele tinha! Era filho do nosso professor carrasco, descobri mais tarde. Foi meu primeiro amor de infância. Um amor não correspondido, inocente, distante, ingênuo e que, ao completar dez anos, fui forçada a deixar de sentir.

Em 1938, o então presidente Getúlio Vargas proibiu a língua alemã e italiana em todo o país. Nunca soubemos ao certo o que acontecia com quem usasse línguas diferentes da portuguesa, mas o clima que nos cercava era de pânico e tensão. Corriam boatos de castigos absurdos, como ser amarrados em postes ou trancados em calabouços e até mesmo de crianças que haviam perdido a língua como forma de repreensão. Tudo isso motivou meus pais (que não falavam absolutamente nada em português) a me tirarem da escola, já que fui, até então, educada apenas em alemão. O medo de que um equívoco meu custasse minha língua foi maior do que a preocupação dos meus pais com meus estudos. Não podia mais ver Willy comendo sua merenda na escola. Chorei por muito tempo por não poder falar com ele, nem em português e muito menos em alemão.

Quando moça, voltava frequentemente aos bailes no salão de festas em que nasci. Era conhecida lá. A beleza da minha juventude chamava muito a atenção de todos os rapazes e causava inveja em algumas moças que não foram agraciadas com meus longos e sedosos cabelos loiros e olhos da cor do mel mais puro das abelhas. Todos disputavam uma dança comigo, mas adorava ver os olhinhos de decepção dos rapazes quando rejeitava a todos eles. Todos, exceto um. Willy Frantz era o seu nome, e um dia me convidou a dançar. Seus lindos olhos azuis celestes não me permitiram dizer não como estava habituada. Era o meu amor de infância: o lindo garotinho, que fez meu coração despertar pela segunda vez em vinte anos, era agora um rapaz mais bonito ainda.

Nos víamos todos os dias desde então e, dali em diante, o tempo voou como um pássaro apressado. Casamos e tivemos oito filhos. A mais velha perdemos para as péssimas condições que a situação nos oferecia. As lágrimas me são inevitáveis todas as vezes que lembro do pequeno corpinho coberto por compressas de água, tentando inutilmente baixar a temperatura do corpo que ardia em febre. Enterramos a pequena de olhos claros sem ao menos poder ouvir sua vozinha pronunciar um “mamãe”. Os meus outros sete filhos cresceram e seguiram suas vidas em lugares distantes de Santa Catarina. Deram-me onze netos e fui divinamente agraciada com três bisnetos.

Hoje, olho para minhas mãos manchadas, meu reflexo embaçado no espelho mostra as rugas com que a idade me presenteou e quase não reconheço a beleza que acompanhou a minha juventude. Meus longos cabelos foram cortados e são branquinhos como a neve, fruto dos anos de trabalho duro que passei ao lado da minha família. Mas nada disso me causa tanta tristeza quanto olhar para o travesseiro ao lado do meu todas as manhãs e ver que o tempo me trouxe a solidão quando perdi o amor da minha vida. O tempo levou aquele que fez parte da minha vida por sessenta e sete anos, nos momentos de alegrias e dificuldades. Hoje, vivo esperando esta longa festa acabar para poder descansar de vez e ver novamente aqueles lindos olhos azuis celestes.

¹ Blau: Azul. Dependendo da forma em que for empregado, pode significar também expressão de boa sensação e de cordialidade.
² neu welt: novo mundo.

Texto escrito por Bruna Frantz Pegoraro, baseado na história vivida e contada por Nelly Frantz.

Nelly aguardou o término dessa longa festa até setembro de 2015, quando faleceu aos 87 anos, dois anos após a morte de seu marido Willy.

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